domingo, 28 de dezembro de 2008

Schubert

Franz Peter Schubert nasceu em Viena a 31 de janeiro de 1797. Filho de um mestre-escola, ingressou como cantor na capela imperial de sua cidade natal em 1808, e freqüentou um internato ligado a esta, onde Salieri o encorajou quando de suas primeiras composições. Em 1810, compôs um de seus mais importantes trabalhos, a Fantasia a quatro mãos e doze movimentos. Possuidor de parcas posses, foi grandemente auxiliado, quando ainda menino, por um colega seu, que lhe fornecia todo o papel de música de que necessitava. Escapando do serviço militar, matriculou-se em uma Escola Normal, tendo ao mesmo tempo o lugar de professor na Escola Particular mantida por seu pai.

Trabalhando desde 1814 como professor primário, teve oportunidade de reger músicas em igrejas suburbanas de Viena. Foi professor das filhas do conde Esterházy durante breves temporadas (1810 e 1824). Desde 1815 chamou atenção dos conhecedores pelas suas composições, especialmente pelos seus lieder. A partir de 1816, dedicou-se inteiramente à música.

Mas sua posição na vida musical vienense sempre foi modesta. Contou sempre com numerosos amigos que o admiravam (Schober, von Spaun, Michael Vogl, Lachner). Teve sucesso principalmente em círculos boêmios, aliás de uma boêmia muito moderada, meio burguesa. O tenor Vogl popularizou as suas canções. Em 1818, já havia composto seis sinfonias completas.

Apesar de Schubert estar atravessando um dos seus períodos mais fecundos no campo criativo, no aspecto pessoal, em 1823, surgiu um mal que poucos anos mais tarde levaria o compositor à morte. Embora seja impossível certificar com total veracidade qual era a enfermidade, depoimentos da época e a descrição dos sintomas que padecia permitem assegurar que contraiu uma doença venérea, concretamente a sífilis. Essa teoria seria corroborada pelo fato de que, no final desse ano, o músico tinha sido obrigado a utilizar uma peruca para ocultar uma repentina calvície, seqüela de um tratamento à base de mercúrio, característico da época.

Sem sombra de dúvidas, as conseqüências desse mal, do qual Schubert nunca se livraria, apesar de momentâneas melhoras, foram as que terminaram com sua existência, e desde o aparecimento dos primeiros transtornos, o músico pareceu-se conformar-se com o final que o aguardava. Durante esse período, compôs relativamente pouco, pois sua saúde se encontrava debilitada, assim como o seu ânimo, tal como reflete uma carta que enviou à Leopold Kupelweiser em 31 de março de 1824: ‘ (...) Sinto-me o homem mais infeliz e desventurado deste mundo. Creio que nunca voltarei a estar bem novamente, e tudo o que faço para tentar melhorar minha situação, na realidade a torna pior (...)’.

Durante o verão de 1823, Schubert iniciou uma longa viagem, acompanhado por seu amigo Michael Vogl, incluindo Steyr e Linz, aonde o esperavam seus companheiros. Nesse mesmo ano, foi nomeado membro da Musikverein der Steiemark, associação musical cuja sede se encontrava em Graz. Suas canções seguiam sendo publicadas com certa freqüência. No terreno da ópera, produziu-se uma nova tentativa por parte de Schubert de se impor nos cenários vienenses, nessa ocasião com a obra Rosamunda D 797, escrita por Wilhelmine von Chezi, e cuja música era obra do compositor austríaco. Rosamunda foi representada pela primeira vez em 20 de setembro de 1823 e, apesar do fracasso da obra teatral, a música que acompanhava o texto chegou a ser apreciada por boa parte do público.

A insistência de Schubert para triunfar nos teatros de ópera da sua cidade constitui um dos fatos que contribui para desmentir a fama de indolente atribuída ao compositor. Alguns anos mais tarde, em uma carta ao seu amigo Bauernfeld, Schubert escreveria umas palavras que refletem o interesse que seguia mantendo pela ópera: ‘Vem o quanto antes para Viena. Dupont quer uma ópera minha, porém os libretos que li não me agradaram em absoluto.

Seria magnífico se o seu libreto de ópera fosse acolhido favoravelmente. Isso daria, ao menos, dinheiro e, talvez, honra. Te peço que venhas assim que puder por causa da ópera.’ Atualmente, a maioria dos musicólogos parece coincidir em que, longe de mostrar deprezo por esse terreno, o mais provável é que o músico de Viena era incapaz, em virtude de seu caráter tímido e retraído, de relacionar-se de forma cômoda com os membros dos sofisticados e mundanos ambientes teatrais. Por esse motivo, parecia confiar unicamente nos contatos que Vogl mantinha com os círculos operísticos, e se a sua inaptidão para a vida social era, provavelmente, muito acusada, também era falso o tão repetido desinteresse que os biógrafos perpetuam nos relatos referentes ao compositor.

Numerosas biografias de Schubert incorrem no argumento de retratar um homem atormentado pela doença, cujos últimos anos foram um suplício para vencer o mal e redimir-se através de suas composições. O certo é que, depois dos primeiros sintomas da enfermidade que o afetaram seriamente durante aproximadamente um ano e meio, o estado geral do músico experimentou uma melhora que, inclusive, o levou a pensar que a sífilis cedia definitivamente. A partir do final de 1824, Schubert se sentiu novamente com forças para prosseguir com sua carreira e levar uma vida praticamente normal.

No verão desse ano transferiu-se de novo para a residência do conde Esterházy, em Zseliz, onde se encarregou uma vez mais da educação musical das filhas do aristocrata. O salário que recebeu durante esses meses não impediu que durante sua volta a Viena reiniciasse seu trabalho como professor na escola de seu pai. No entanto, depois de alguns meses de vida austera, conseguiu reunir dinheiro suficiente para abandonar, outra vez, o lar paterno e viver com seus amigos.

O ano de 1825 se apresentava com algumas perspectivas. O estado de saúde de Schubert havia experimentado uma notável - embora passageira - melhora, e de novo o músico se entregou a sua tarefa compositiva com ardor. Dessa época datam os sete lieder que escreveu baseados em ‘A dama do lago’, de Walter Scott. Por outro lado, em meados de 1826, solicitou ocupar o posto vago de diretor da apela da côrte. Uma vez mais, seu pedido foi negado, em favor de um músico mais conhecido em sua época, o diretor da Ópera de Viena, Joseph Weigl.

No verão de 1828, Schubert permaneceu em Viena, ocupado com a conclusão de suas últimas obras-primas e suportando novos embates da doença que, já fazia cinco anos, o molestava. Seus amigos perceberam o fato e passaram-se a encarregar das necessidades básicas do músico. Schubert viveu algumas semanas com seu amigo Jenger e, posteriormente, se mudou para a casa de seu irmão Ferdinand, nos arredores de Viena.

Ao terminar o período estival, decidiu regressar à cidade para aprofundar seus conhecimentos de contraponto com Simon Sechter, professor de harmonia e de composição que lhe ministrou somente uma aula, em 4 de novembro. Poucos dias mais tarde caiu novamente doente, e lhe foi diagnosticado tifo, em razão do qual os médicos o proibiram de comer. Em uma carta de 12 de novembro, dirigida à Schober, escrevia: ‘Levo onze dias sem comer e beber nada. Qualquer coisa que tento ingerir devolvo no instante...’.

Em pouco tempo seu estado de saúde foi se agravando e se viu obrigado a ficar em cama. Recebeu a visita de seus amigos e solicitou que fosse interpretado diante dele o ‘Quarteto n.º 14’ de Beethoven, desejo que cumpriu em 14 de novembro. Porém, os últimos dias passou só com seu irmão, pois o temor ao contágio acabou-lhe distanciando do seu círculo de amigos. Em 19 de novembro de 1828 exalava seu último suspiro.

Recentemente, o doutor Dieter Kerner escreveu uma interessante obra dedicada às doenças que afligiram os grandes músicos. Com base em suas teorias, o tifo não foi a causa de sua morte, em virtude da ausência de febre que apresentava Schubert. A sífilis foi a causa do óbito do compositor, como parecem demonstrar os resultados da autópsia, que indicava uma importante deterioração do córtex cerebral. Provavelmente, concluiu o doutor Kerner, a morte poupou o ainda jovem compositor do final que tiveram, por exemplo, Friederich Nietzsche e Hugo Wolf, condenados pela doença a viver seus últimos anos submergidos na loucura.

No dia 21 de novembro, o corpo de Schubert foi enterrado no cemitério de Währing. Seu amigo Franz Grillparzer se encarregou de redigir o epitáfio que hoje adorna seu túmulo, e que diz o seguinte: ‘A música enterrou aqui um rico tesouro/ e esperanças todavia mais belas./ Aqui repousa Franz Peter Schubert/ nascido em 31 de janeiro de 1797/ morto em 19 de novembro de 1828/ com a idade de 31 anos’. Em 1888, seu corpo foi transladado ao Zentralfriedhof - Cemitério Central - da capital austríaca, onde repousa junto ao de Beethoven, no chamado Panteão dos artistas.

As duas vertentes - Schubert vive na consciência de muitos, sobretudo de leigos, como compositor meio alegre e meio melancólico, algo leviano, enfim, tipicamente vienense. Não se pode negar que muitas obras de Schubert correspondem a essa definição. Mas também existe um outro Schubert, profundamente sério, compositor da mais alta categoria e sucessor digno de Beethoven. Não começou como músico ligeiro, evoluindo para a arte séria. Entre as suas primeiras obras já existem provas incontestáveis do gênio, ao passo que escreveu música ligeira até o fim da vida. A distinção das duas vertentes, serve, porém, como fio de orientação na obra de Schubert, muito volumosa e imensamente rica.

Música vienense - Grande parte das obras de Schubert é inspirada pelo folclore musical vienense (que é bastante diferente do folclore musical das regiões rurais da Áustria, base da inspiração musical de Haydn). As respectivas composições de Schubert são de melodismo fácil e insinuante, conhecidas e queridas no mundo inteiro: as marchas militares, as danças germânicas, as valsas, sobretudo a famosa Valsa da saudade. No mesmo estilo escreveu obras de grande formato, como o Quinteto para piano em lá menor - A truta (1819), cujo apelido deve-se à um dos movimentos ser variações sobre o lied homônimo de Schubert. A obra já foi definida como "de frescor de uma manhã nos campos". Música parecida é a do Trio para piano em si bemol maior (1827).

Música instrumental séria - Muitos incluem no grupo de música instrumental séria, a famosa Sinfonia n.º 8 em si menor - Inacabada (1822). A data mostra, aliás, que a obra não foi - como muitos acreditam - interrompida pela morte. O trabalho foi abandonado por motivos que se ignoram. A obra é hoje prejudicada pela imensa popularidade dos seus temas. Ouvida sem parti-pris, é obra séria, impressionante, de energia inesperada. Mas é muito mais importante a Sinfonia n.º 7 em dó maior (1828), a maior de todas as sinfonias entre Beethoven e Brahms, e que seria digna desses dois grandes mestres.

No entanto, as maiores obras instrumentais de Schubert foram realizadas no terreno da música de câmara. Os quartetos para cordas em lá menor (1824) e sol maior (1826) e o isolado movimento do Quarteto para cordas em dó menor (1820), fragmento de mais outra obra inacabada, são de grande categoria, mas superados pelo célebre Quarteto para cordas em ré menor - A morte e a donzela (1824), cujo apelido deve-se ao segundo movimento, onde constam variações sobre o lied homônimo do compositor. É obra digna de Beethoven, de intenso romantismo nostálgico. Mas mesmo a esse grande quarteto pode-se preferir o Quinteto para cordas em dó maior (1828), talvez a maior composição instrumental de Schubert.

Estilo - Schubert é clássico e romântico ao mesmo tempo. É clássico quanto à forma e a estrutura das composições instrumentais, seguidor de Haydn, Mozart e Beethoven. Às vezes intervêm mais outras influências, sobretudo a de Händel nas formas grandes da música sacra: os handelianos não acham, aliás, perfeita a Missa em mi bemol maior (1828), mas a Missa em lá bemol maior (1822), embora tão "profanamente alegre" como as missas de Haydn, é obra-prima.

O romantismo de Schubert revela-se, sobretudo, em seu uso da harmonia, que é no Quarteto - A morte e a donzela, por exemplo, audacioso e inovador. Romântico é também pelo uso de novas formas musicais, na música para piano solo. A Fantasia em dó maior - O caminhante (1822), denominada assim porque usa os ritmos do lied homônimo de Schubert, é - antes de Berlioz e Liszt - uma obra de música de programa. E os Improvisos Op. 142 (1827) antecipam de maneira surpreendente o estilo de Chopin.

Lieder - A obra instrumental de Schubert já bastaria para incluí-lo entre os maiores vultos da história da música. Mas Schubert é, além disso e sobretudo, o primeiro grande mestre do lied, do canto de câmara. Criou mesmo essa forma, que antes era seca e pouco poética, imperfeita até nas respectivas composições de Beethoven. Vale a pena salientar que só a forma estrófica desses lieder é a da canção popular alemã. Mas os lieder de Schubert não têm nada de folclórico: é a poesia lírica da música. E é principalmente nos lieder, na escolha dos textos e em sua ornamentação musical, que se revela o romantismo do compositor.

Entre os cerca de 600 lieder de Schubert, há muitos que pertencem ao gênero ligeiro, vienense, como A truta (1817), Para cantar na água (1823), O caminhante à lua (1826). Mas já na mocidade escreveu o compositor algumas de suas melhores peças: a famosa balada Erlkönig (1815), o altamente romântico O caminhante (1816), aproveitado depois na homônima fantasia para piano, A morte e a donzela (1817) e o comovente hino À música (1817). Romanticamente inspirado é também o belíssimo No crepúsculo (1824) e o ciclo A bela moleira (1823), em que se alternam a alegria e a melancolia.

Os grandes ciclos - Obras-primas são os 24 lieder do ciclo A viagem de inverno (1827): sobre textos medíocres de Wilhelm Müller (1794-1827) escreveu o compositor um grupo de peças profundamente trágicas, como os admiráveis O poste e O homem do realejo.

É de 1828, publicação póstuma Canto de cisne. Não é propriamente um ciclo, mas são os últimos lieder que o compositor escreveu, reunidos pelo editor sob aquele título. Pouco antes de morrer, tinha Schubert lido poesias de Heine, que lhe inspiraram alguns do lieder mais profundos desse último ciclo: A cidade, No mar, Vendo-se a si próprio como espectro, da mais alta dramaticidade. O ciclo termina com Despedida, que é ambiguamente alegre e fúnebre.

Quando Schubert morreu, a maior parte de sua obra estava inédita, de modo que se falava de "grandes esperanças só prometidas". Foi Schumann quem descobriu e publicou, anos depois, os originais das grandes obras instrumentais. Os lieder já tinham conquistado o mundo inteiro.

Qualquer apreciação da obra de Schubert deve levar em conta um dado crucial: seu prematuro desaparecimento que, em virtude da evolução que apresentavam suas últimas composições, provavelmente furtou ao mundo uma série de obras mestras.

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